A Imaculada Conceição de Maria como BOA NOVA

Dito em linguagem clássica, o Dogma da Imaculada Conceição refere-se à “concepção de Maria sem mancha de pecado original”. A maior parte dos católicos pensa ainda, erradamente, que a linguagem da Imaculada Conceição tem a ver com a concepção virginal de Jesus. Durante a sua história, a Igreja proclamou quatro dogmas marianos: a Maternidade Divina de Maria, a Virgindade de Maria, a Assunção de Maria e a sua Imaculada Conceição.
Este dogma foi proclamado apenas em 1854 pelo Papa Pio IX, e o texto original diz o seguinte: “No primeiro instante da sua concepção, pela graça e privilégio de Deus Todo-Poderoso e em consideração aos méritos de Jesus Cristo, salvador do género humano, a Virgem Maria foi preservada e isenta de toda a mancha de pecado original”.
É isto que significa Imaculada [sem mácula-mancha-pecado] Conceição [concepção].
Um Dogma é uma formulação teológica que serve à Igreja para dizer uma determinada dimensão do Mistério da Fé num tempo concreto. Temos sempre que distinguir entre a aquisição teológica a que a Igreja chega e as condicionantes culturais em que a exprime. Sem esta permanente releitura da nossa própria linguagem da Fé caímos no dogmatismo farisaico ao qual Paulo já se referia: “A letra mata, o Espírito é que dá a vida” (2Cor 3, 6).
Em relação ao dogma da Imaculada Conceição, este não pode ser mediação da Boa Nova se não fizermos uma releitura do que significa “Pecado Original”.
Quando foi escrito o Dogma, por “Pecado Original” entendia-se uma mancha na alma herdada de geração em geração, que passava através da relação sexual. Já tinha acontecido ao longo de toda a teologia medieval um afastamento quase radical da teologia bíblica e da sua compreensão de pecado, que tem sempre a ver com a quebra de uma Aliança. A linguagem bíblica é sempre relacional.
No entanto, depois entendeu-se o pecado como “mancha na alma”, maior ou menor conforme a gravidade… Era preciso ter a alma sempre mais ou menos limpa, porque a qualquer hora podia soar a hora do juízo [morte], e cada um seria julgado pela brancura e pelas manchas da alma. Não havia a mínima noção da interioridade pessoal humana como construção histórica. A “alma” era igual para todos, vinha directamente de Deus e era introduzida no corpo humano durante a gestação intra-uterina (!!!); a diferença é que uns a tinham mais limpa, outros mais suja! Para limpar havia os Sacramentos, sobretudo a Confissão, e diversos sacrifícios [jejum, longas orações, abstinência sexual, peregrinações…].
Como não havia outra maneira de conceber pessoas senão através da relação sexual, mas como esta era pecado [como, aliás, tudo que tivesse a ver com sexualidade!], todos os seres humanos nasciam com uma mancha do pecado na alma, antes mesmo de poderem pecar! Este era chamado o “Pecado Original” [o que vem das origens].
Como vemos, a formulação do Dogma está muito distante da compreensão bíblica do Mistério da Vida de Deus e do Homem…
Na bíblia, o que chamamos “Pecado Original” [que é uma expressão criada por Sto. Agostinho no séc. IV] chama-se Pecado de Adão. Adão é a figura simbólica do princípio da Humanidade. Adão e Eva cederam à tentação da Arbitrariedade, ao impulso de escolher o bem ou o mal em função de si próprios, e assim iniciaram a dinâmica do Egoísmo. É isso que significa “colher da Árvore do Conhecimento do Bem e do Mal”. O Egoísmo provoca rupturas: estavam nus um diante do outro, e deixam de estar [estar nu diante do outro é símbolo da verdade e da confiança recíproca]; eram unidos como uma só carne, mas passam a acusar-se mutuamente; viviam em harmonia com toda a criação, mas agora vão ter que lutar com ela para viverem [é o que significa o trabalho agrícola]…
Mas este Pecado de Adão não ficou encerrado neles… A bíblia continua: tiveram dois filhos, e um matou o outro!!! A Arbitrariedade gerou o Egoísmo; o Egoísmo gerou a Acusação; a Acusação gerou o Fratricídio.
Depois – ainda continua a bíblia – Caim vai ser pai de muita gente… E passado um pouco encontramo-nos simbolicamente com toda a Humanidade junto à Torre de Babel, símbolo do desejo de possuir, dominar e conquistar que gera o desentendimento universal! [todos estes símbolos da história humana marcada pelo pecado estão nos 11 primeiros capítulos da bíblia]
Já no Novo Testamento, São Paulo usará uma imagem muito simples para entendermos o mistério da Nova Aliança como Reconciliação: a Humanidade é como um enorme Corpo a que todos pertencemos. “Quando a Cabeça não tem juízo… o Corpo é que paga!”
A primeira Cabeça da Humanidade [Adão] iniciou a dinâmica do pecado, do egoísmo que gera a violência, e isso é como que o sangue que percorre todo o Corpo, infectando-o…
Então, Deus amante da Humanidade, o que sonha? Dar-lhe uma Nova Cabeça! Jesus Cristo é o Novo Adão – diz Paulo – ou seja, é a Nova Cabeça da Humanidade. Acontece em Jesus Cristo a Recapitulação da Humanidade [re-capite: pôr uma nova cabeça]. Da Nova Cabeça circula para o Corpo a dinâmica da Vida, da Reconciliação e da Paz que recria o Corpo inteiro do pecado. Eis como o diz o Apóstolo: “Por um homem penetrou o pecado no mundo, e pelo pecado a morte [no sentido de morte violenta, como o fratricídio de Caim], e assim a morte estendeu-se para toda a Humanidade. Mas assim como pelo pecado de um só reinou a morte através dele, com muito maior razão por meio de Jesus Cristo reinou a vida… Assim como com o pecado de um só se estendeu a condenação a toda a Humanidade, assim a fidelidade de um só estendeu a toda a Humanidade o decreto que concede a vida! Onde abundou o pecado, superabundou a Graça! (Rom 5, 12-20)
Assim como o Primeiro Adão introduziu na marcha histórica da Humanidade a dinâmica do pecado que gera o fratricídio, o Novo Adão tornou-se para todos dador do Espírito da Vida que gera a Fraternidade. Assim como o pecado de Babel gerara a confusão entre todas as línguas, o Espírito do Pentecostes gerou o entendimento entre todas! Eis a Nova Humanidade iniciada em Jesus, o Cristo.
Esta Nova Humanidade nele inaugurada ainda não está acabada. Ainda correm nas “veias relacionais” deste Corpo universal muitos ritmos negativos à moda de Adão… Mas circula também neste Corpo que formamos com todos os Homens e Mulheres de todos os tempos o Espírito Santo que nos inspira ao Amor e nos abre a relações fraternas marcadas pela Verdade e pelo Bem-Querer.
Aqui, temos que despertar para uma outra dimensão essencial da Vida: começamos por ser o que outros fizeram de nós. Quando uma pessoa humana começa a tomar consciência da sua própria existência já está profundamente habitada e marcada por outros! É à luz desta verdade que devemos entender hoje a linguagem do Pecado Original, o Pecado que vem das Origens.
Nascemos num contexto que não escolhemos nem pedimos. Começamos a nossa vida recebendo um leque de possibilidades que nos são dadas pelos outros. No entanto, os outros também inscrevem em nós bloqueios e limitações. A Humanização é um processo histórico de realização das possibilidades permanentemente recebidas e a vitória sobre os bloqueios, na certeza de que quando realizamos uma possibilidade abre-se um novo leque de possibilidades, e quando derrotamos um bloqueio ficamos mais fortes para derrotar os seguintes!
Ninguém é herói ou culpado pelas possibilidades ou bloqueios que são inscritos na sua vida. O heroísmo ou a culpa decidem-se no modo como cada um põe as suas possibilidades a render. As possibilidades têm sempre a ver com o amor, e os bloqueios são sempre consequência do pecado humano.
Falar de Pecado Original significa compreender esta dinâmica da vida pela qual nascemos no seio de uma Humanidade marcada não só por ritmos positivos, mas também por ritmos negativos. Entende tudo isto como linguagem relacional!
Podemos entender o Pecado que vem das Origens deste modo: começamos por ser apenas vítimas do pecado da Humanidade, mas depois tornamo-nos também culpados desse pecado pelo nosso próprio pecado individual. Isto é, não só nascemos num contexto humano marcado por ritmos negativos, como depois nós próprios inscrevemos alguns ritmos negativos na marcha da História.
Dizer que Maria, mãe de Jesus, foi “isenta de pecado original” não significa, por isso, que não tinha uma “manchinha na alma” que os outros tinham! Significa dizer que nascendo no seio de uma Humanidade marcada por ritmos negativos, não inscreveu na história novos ritmos negativos! Vítima do pecado humano, não se tornou culpada desse pecado pelo seu próprio pecado individual. Por isso foi uma mediação extraordinária da Verdade e da Ternura Maternal do Espírito Santo para Jesus na preparação da sua Missão Messiânica!
Celebrar Maria como Imaculada Conceição é Boa Nova para todos os discípulos de Jesus, o Cristo, porque se torna para nós apelo a derrotarmos a lógica do pecado original-universal em nós e nas nossas comunidades.
A linguagem da “manchinha da alma” milagrosamente inexistente retira dignidade a Maria, desfigura a seriedade de Deus e é totalmente inconsequente para a nossa própria Fé!
Ajuda-nos,
Espírito da Verdade, que nenhuma fórmula pode conter
nem nenhum tempo consegue esgotar,
a vivermos abertos à Novidade da Tua presença
e à Surpresa da Tua acção em nós.
Dá-nos um Coração Generoso
para nunca nos negarmos aos Teus pedidos,
Forte para vencermos o pecado que nos vitimiza
e Sábio para resistir a todas as tentações
que aumentam o Pecado Original-Universal!
Servos de Jesus Cristo,
o Novo Adão,
faz-nos vitoriosos sobre o Pecado, a Violência e a Morte!
Amén

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