"Effathá", Abre-te!

Domingo XXIII do Tempo Comum (B)

1ª Leitura – Do Livro de Isaías
Dizei aos que têm o coração entristecido:«Tomai ânimo, não temais!» Eis o vosso Deus, que vem para vos vingar. Deus vem, Ele mesmo, retribuir-vos e salvar-vos.
Então se abrirão os olhos do cego, os ouvidos do surdo ficarão a ouvir, o coxo saltará como um veado, e a língua do mudo dará gritos de alegria; porque as águas jorraram no deserto e as torrentes na estepe. A terra queimada mudar-se-á em lago, e as fontes brotarão da terra seca. No covil onde repousavam os chacais, crescerão canas e juncos.
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2ª Leitura – Da Carta de Tiago
Meus irmãos, não tenteis conciliar a fé em Nosso Senhor Jesus Cristo glorioso com a distinção entre pessoas. Suponhamos que entra na vossa assembleia um homem com anéis de ouro e bem trajado, e entra também um pobre muito mal vestido, e, dirigindo-vos ao que está magnificamente vestido, lhe dizeis: «Senta-te tu aqui, num bom lugar», e dizeis ao pobre: «Tu, fica aí de pé»; ou «Senta-te no chão, abaixo do meu estrado.» Não é verdade que, então, fazeis distinções entre vós mesmos e julgais com critérios perversos?
Ouvi, meus amados irmãos: porventura não escolheu Deus os pobres segundo o mundo para serem ricos na fé e herdeiros do reino que prometeu aos que o amam?
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3ª Leitura – Do Evangelho de Marcos
Tornando a sair da região de Tiro, veio por Sídon para o mar da Galileia, atravessando o território da Decápole. Trouxeram-lhe um surdo que mal falava e rogaram-lhe que impusesse as mãos sobre ele.
Afastando-se com ele da multidão, Jesus meteu-lhe os dedos nos ouvidos e fez saliva com que lhe tocou a língua. Erguendo depois os olhos ao céu, suspirou dizendo: «Effathá», que quer dizer «abre-te.» Logo os ouvidos se lhe abriram, soltou-se a prisão da língua e falava correctamente. Jesus mandou-lhes que a ninguém revelassem o sucedido; mas quanto mais lho recomendava, mais eles o apregoavam.
No auge do assombro, diziam: «Faz tudo bem feito: faz ouvir os surdos e falar os mudos.»

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Comentário às Leituras
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- "Effathá", Abre-te! -
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I. Esta profecia de Isaías aconteceu no contexto do Exílio do Povo na Babilónia. A Boa Notícia da Consolação de Israel brota da certeza da Fidelidade de Deus, do qual o Profeta diz que “fará vingança ao Seu Povo”, ou seja, reconduzi-lo-á pelo caminho da Libertação.
Na cultura bíblica, a Libertação estava associada muuitas vezes à cura de doenças graves, porque estas eram consideradas como consequência de possessões de espíritos impuros ou castigo pelos pecados.
Por isso, Isaías proclama a acção libertadora de Deus como manifestação maravilhosa do Seu Poder sobre todos os “poderes” e do Seu Perdão sobre todos os pecados!
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Jesus de Nazaré viria a ser a Revelação e Realização máxima deste “Poder Perdoador” de Deus que se manifesta biblicamente na acção de curar…
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É essa a mensagem dos “milagres” nos evangelhos. Não são a proclamação de Jesus como curandeiro, mas como Libertador de Deus!
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II. Na semana passada o evangelho falava-nos da tensão entre Jesus e os fariseus por causa das suas tradições judaicas vazias, e da dificuldade que isso trazia no acolhimento da Boa Notícia do Mestre. Logo a seguir, aparece-nos este pedaço de evangelho, e não é por acaso que Marcos nos diz por onde Jesus andava: Tiro e Sidónia são duas grandes cidades pagãs a Norte de Israel, e a Decápole é uma extensa região pagã formada também por dez grandes cidades (em grego, deca-polis: dez cidades).
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O que o evangelista está simbolicamente a dizer é que Jesus está a formar um Novo Povo de Deus, sempre representado com o número 12. Israel era o Povo das doze tribos, e agora Jesus dilata o Povo de Deus a uma dimensão universal, pelo símbolo das doze cidades pagãs.
Por isso Jesus diz ao surdo, símbolo de todos os pagãos: “Abre-te!”. E toca-lhe os ouvidos para ouvir e a língua para falar. Isto significa que a Palavra de Deus começa a ser escutada e acolhida para além das fronteiras de Israel, e um Novo Povo se forma pelo anúncio do Reino de Deus.
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Nunca encontramos Jesus sentado numa secretária a escrever “mensagens espirituais”, nem numa poltrona à espera dos que viessem ter com ele para lhes ensinar as mais recentes doutrinas… Jesus está sempre A CAMINHO! Ele, “o Rosto visível de Deus” sempre a Caminho, o não-instalado e não-pretensioso…
A este Jesus Caminhante “trouxeram um surdo que falava com dificuldade para que lhe impusesse as mãos”. Mas Jesus não fez o que lhe pediram! Não lhe impôs as mãos. Retirou-o antes da multidão, abriu-lhe os ouvidos e soltou-lhe a prisão da língua...
Jesus é a revelação de um DEUS SEMPRE MAIS do que nós somos capazes de pedir, imaginar ou merecer. Um Deus que nos surpreende porque não coincide connosco! Deus é Amor, e o Amor é “sempre mais”, senão deixaria de ser Amor. Porque Deus é Amor, DEUS É SURPREENDENTE. Não se deixa vencer em generosidade, e toma sempre a iniciativa de superar a nossa capacidade de pedir, imaginar ou merecer o Seu Amor por nós.
Por isso, engrandece-nos, dá largas à nossa Vida e amplia-nos o Coração. E, acima de tudo, liberta-nos de todos os entraves a sermos verdadeiramente o que estamos chamados a ser, tal como libertou o surdo com quem se encontrou em Jesus.
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A primeira libertação não é ainda da surdez ou da prisão da língua, mas sim da multidão! É a primeira “doença” que nos costuma afectar… Esta multidão não é tanto um conjunto de pessoas que nos apertam de todos os lados e nos roubam a possibilidade de escolher para onde queremos ir, o que queremos ouvir e dizer. Essa é símbolo de uma multidão mais interior, a do Coração que não é livre, um Coração barulhento, em rebuliço, sempre apressado para nenhures, quase sempre intranquilo, cheio de coisas urgentes para resolver e distraído das importantes
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Jesus liberta-nos desta multidão na medida em que nos deixamos “afastar com ele da multidão”, e conduz-nos à intimidade consigo. Sim, é de intimidade que este encontro agora fala. Se reparares, agora tudo está sereno… já não há multidão, já não há caminho, já não há cidades… dois rostos apenas, na profundidade de um encontro transformador: Jesus toca, faz silêncio, levanta os olhos, suspira e sussurra uma só palavra: “Effathá” “Abre-te”, abre-te à Palavra nova que se diz e escuta na intimidade.
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“Abre-te”, abre-te à Palavra que te liberta de toda a surdez do Coração. As palavras da multidão ensurdecem! A Palavra de Jesus liberta e recria!
“Abre-te”, abre-te à Palavra que porá na tua língua palavras novas que não se deixam aprisionar nem te engasgam enquanto falas. As palavras da multidão prendem! A Palavra de Jesus solta a prisão de todas as línguas e recria os Homens no diálogo e na comunhão entre si.
Na intimidade com Jesus, libertos da multidão, abrem-se os nossos ouvidos à Palavra de Deus, e percebemos que ela coincide com o melhor de nós próprios e o melhor da Vida. Um Deus que é Amor não pode senão amar-nos e querer-nos Felizes!
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Então, soltamo-nos de muitas prisões, as da língua e todas as outras em que nos vamos deixando prender todos os dias em que andamos distraídos, e começamos a “falar correctamente”. O que é “falar correctamente”? É dizer o que deve ser dito, anunciar o que se escuta, fazer da boca eco do Coração, tornar-se Palavra Viva e fonte de Vida para todos os de Coração atento e disponível.
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A intimidade com Jesus torna-nos seus DISCÍPULOS, os que abrimos os ouvidos para escutar a sua Palavra, e torna-nos seus APÓSTOLOS, os que nos livramos de todas as prisões da língua para anunciar a sua Palavra e dar testemunho da sua acção: “Ele faz tudo bem feito!”
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III. A fidelidade a este Encontro, a esta Palavra e a esta Cura na Intimidade joga-se nas opções e iniciativas quotidianas. É isto que nos relembra a Carta de Tiago na segunda leitura. Os discípulos do "Cristo não-pretensioso de Deus" devem ser seus continuadores verdadeiros na atitude de simplicidade e fraternidade que derrota todas as barreiras criadas pelos preconceitos.
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Até dentro da Igreja ainda devemos aprender bem tudo isto… Aprender que neste Corpo Histórico de Cristo há diferença de funções, missões, carismas e serviços, mas não podemos nunca permitir diferenças de dignidade!!!

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