O perigo de se "armar em Deus!"

Domingo XXII do Tempo Comum (B)
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1ª Leitura – Do Livro do Deuteronómio
«Agora, Israel, ouve as leis e os preceitos que eu hoje vos ensino. Ponde-os em prática para que vivais e chegueis a possuir a terra que o Senhor, Deus dos vossos pais, vos há-de dar.
Nada acrescentareis ao que hoje vos prescrevo e nada eliminareis, guardando os mandamentos do Senhor, vosso Deus, tal como eu vos prescrevo. Observai-os e ponde-os em prática, porque isso manifestará a vossa sabedoria e a vossa inteligência aos olhos dos povos que, ao terem conhecimento de todas estas leis, dirão: ‘Que povo sábio e inteligente é esta grande nação!’ Com efeito, que grande nação haverá que tenha um deus tão próximo de si como está próximo de nós o Senhor, nosso Deus, sempre que o invocamos? E que grande nação haverá, que possua leis e preceitos tão justos como esta lei que eu hoje vos apresento?

2ª Leitura – Da Carta de Tiago
Toda a boa dádiva e todo o dom perfeito vêm do alto, descendo do Pai das luzes, no qual não há mudanças nem períodos de sombra.
Por sua livre decisão, nos gerou com a palavra da verdade, para sermos como que as primícias das suas criaturas. Recebei com mansidão a Palavra em vós semeada, a qual pode salvar as vossas almas. Mas tendes de a pôr em prática e não apenas ouvi-la, enganando-vos a vós mesmos. A religião pura e sem mácula diante daquele que é Deus e Pai é esta: visitar os órfãos e as viúvas nas suas tribulações e não se deixar contaminar pelo mundo.

3ª Leitura – Evangelho de Marcos
Os fariseus e alguns doutores da Lei vindos de Jerusalém reuniram-se à volta de Jesus,
e viram que vários dos seus discípulos comiam pão com as mãos impuras, isto é, por lavar. É que os fariseus e todos os judeus em geral não comem sem ter lavado e esfregado bem as mãos, conforme a tradição dos antigos; ao voltar da praça pública, não comem sem se lavar; e há muitos outros costumes que seguem, por tradição: lavagem das taças, dos jarros e das vasilhas de cobre. Perguntaram-lhe, pois, os fariseus e doutores da Lei: «Porque é que os teus discípulos não obedecem à tradição dos antigos e tomam alimento com as mãos impuras?» Respondeu: «Bem profetizou Isaías a vosso respeito, hipócritas, quando escreveu:Este povo honra-me com os lábios, mas o seu coração está longe de mim.
Vazio é o culto que me prestam e as doutrinas que ensinam não passam de preceitos humanos.
Descurais o mandamento de Deus, para vos prenderdes à tradição dos homens.»
Chamando de novo a multidão, dizia: «Ouvi-me todos e procurai entender.
Nada há fora do homem que, entrando nele, o possa tornar impuro. Mas o que sai do homem, isso é que o torna impuro.
Porque é do interior do coração dos homens que saem os maus pensamentos, as prostituições, roubos, assassínios,
adultérios, ambições, perversidade, má fé, devassidão, inveja, maledicência, orgulho, desvarios. Todas estas maldades saem de dentro e tornam o homem impuro.»
Comentário às Leituras
- O perigo de se "armar em Deus"! -
I. Nos tempos em que o Povo de Israel não tinha o Templo de Jerusalém, era conduzido pelos Profetas a experimentar verdadeiramente que Deus Se fazia presente ao Povo pela Palavra que lhe comunicava, ou seja, pela Revelação progressiva do Seu Projecto Salvador-Libertador.
Nos “tempos da infidelidade”, como lhe chamavam os Profetas, o Povo julgava que a proximidade de Deus se realizava pelos cultos vazios do Templo, pelos sacrifícios rituais e pelo cumprimento farisaico de todas as normas vigentes por tradição ou imposição sacerdotal.
Mas esse não foi o caminho escolhido por Deus…
“Deus está perto de nós” pela Palavra que nos comunica e pelo Caminho de Libertação que nos rasga diante dos olhos! A nossa fidelidade joga-se no esforço de pormos os pés a Caminho do Horizonte que os olhos vêem…

II. Deus tinha pedido ao Seu Povo que ninguém acrescentasse nada à Sua Palavra, ou seja, que ninguém “se armasse em Deus”! É sempre um perigo os Homens inventarem preceitos e normas por si próprios e depois chamarem-lhes “Lei de Deus” ou “Vontade de Deus”. Ao longo de toda a história foi sempre fonte de graves injustiças: as cruzadas cristãs medievais, ou as actuais jihad islâmica e utopia messiânica judaica são exemplos bem evidentes disso!
No tempo de Jesus, o judaísmo tinha deixado praticamente de ser a experiência agradecida do Deus Libertador de todas as escravidões e opressões, e tinha-se tornado um conjunto de rituais e obediências vazias de significado.
Neste episódio da desobediência de Jesus aos preceitos tradicionais da “purificação”, é-nos revelado o perigo de ritualizarmos a nossa relação com Deus e de legalizarmos a Sua Vontade.
Querer colocar-se em lugar de Deus e trocar a Sua Palavra permanentemente Viva pelas tradições ressequidas dos Homens e pelas doutrinas bafientas das religiões é meio caminho andado para muitas injustiças. É exactamente por isso que ainda hoje há, na Igreja, milhares de pessoas injustiçadas e empobrecidas por causa das leis daqueles que julgam ser donos da Vontade de Deus e autores da Sua Verdade: os divorciados recasados ou os homossexuais, por exemplo.

Cristo precisa de Discípulos livres de todas as cadeias legalistas, Apóstolos decididos que partam as distinções pecaminosas entre “puros e impuros”, “estar em estado de graça e não estar em estado de graça”! Cristo precisa hoje ainda de Profetas capazes de viver e morrer pela causa do Reino de Deus que implica a libertação de todos os oprimidos na sua vontade ou na sua consciência.

III. Como diz a Carta de Tiago: “Ser ouvinte da Palavra e não seu cumpridor é um engano! A religião pura e sem mancha aos olhos de Deus (não aos olhos dos fariseus…) consiste em ajudar os órfãos e as viúvas (expressão bíblica para designar todos os marginalizados) nas suas tribulações e conservar-se limpo do contágio do mundo (porque os critérios do mundo são muito parecidos com as lógicas farisaicas: comparação, juízo, rivalidade e opressão).

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