"Bem Aventurados os que constroem o Reino de Deus!"

Domingo VI do Tempo Comum (C)
1ª Leitura - Do Livro de Jeremias


Isto diz o Senhor: Maldito aquele que confia no homem e conta somente com a força humana,
afastando o seu coração do Senhor. Assemelha-se ao cardo do deserto; mesmo que lhe venha algum bem, não o sente, pois habita na secura do deserto, numa terra salobra, onde ninguém mora.
Bendito o homem que confia no Senhor, que tem no Senhor a sua esperança.
É como a árvore plantada perto da água, a qual estende as raízes para a corrente;
não teme quando vem o calor, e a sua folhagem fica sempre verdejante. Não a inquieta a seca de um ano e não deixará de dar fruto.

2ª Leitura - Da 1ª Carta de Paulo aos Coríntios


Ora, se se prega que Cristo ressuscitou dos mortos, como é que alguns de entre vós dizem que não há ressurreição dos mortos?
Pois, se os mortos não ressuscitam, também Cristo não ressuscitou. E, se Cristo não ressuscitou, é vã a vossa fé e permaneceis ainda nos vossos pecados. Por conseguinte, aqueles que morreram em Cristo, perderam-se. E se nós temos esperança em Cristo apenas para esta vida, somos os mais miseráveis de todos os homens. Mas não! Cristo ressuscitou dos mortos, como primícias dos que morreram.

3ª Leitura - Do Evangelho de Lucas


Descendo com eles, deteve-se num sítio plano, juntamente com numerosos discípulos e uma grande multidão de toda a Judeia, de Jerusalém e do litoral de Tiro e de Sídon. Erguendo os olhos para os discípulos, pôs-se a dizer: «Felizes vós, os pobres, porque vosso é o Reino de Deus. Felizes vós, os que agora tendes fome, porque sereis saciados. Felizes vós, os que agora chorais, porque haveis de rir. Felizes sereis, quando os homens vos odiarem, quando vos expulsarem, vos insultarem e rejeitarem o vosso nome como infame, por causa do Filho do Homem. Alegrai-vos e exultai nesse dia, pois a vossa recompensa será grande no Céu. Era precisamente assim que os pais deles tratavam os profetas». «Mas ai de vós, os ricos, porque recebestes a vossa consolação! Ai de vós, os que estais agora fartos, porque haveis de ter fome! Ai de vós, os que agora rides, porque gemereis e chorareis! Ai de vós, quando todos disserem bem de vós! Era precisamente assim que os pais deles tratavam os falsos profetas».


Comentário às Leituras
"Bem Aventurados os que constroem o Reino de Deus!"

1. Os profetas usam muitas vezes uma linguagem “a preto e branco” para que a sua mensagem não se perca nas interpretações… O próprio Jesus deu este critério aos seus discípulos: “Que o vosso modo de falar seja este: ‘Sim, Sim; Não, Não!’ O que for além disto procede do maligno” (Mt 5, 37)
No trecho de Jeremias que usamos hoje como primeira leitura, Deus aponta ao Seu Povo as duas formas de infidelidade mais comuns: a idolatria e a insensatez. Por idolatria quero dizer que o Povo se deixava encantar pelos cultos de adoração a “divindades” pagãs, ídolos que Iahvéh não conhecia. Por insensatez quero exprimir uma atitude bíblica muito frequente que era querer agir e decidir a sorte do Povo sem contar com Deus nessa decisão, mas “contar unicamente com as suas próprias forças”! Isto significa agir unicamente à luz das tácticas e artimanhas que os poderosos das nações utilizam entre si, e não à luz da Aliança de Deus com o Seu Povo, feita de Fidelidade e Promessa.
Quer a idolatria quer a insensatez têm como base a falta de Confiança em Deus.
Por isso esta linguagem dura do profeta, chamando “malditos” aos que, pertencendo ao Povo de Deus, vivem apenas com horizontes humanos e segundo as lógicas dos pagãos. É o que significa o “maldito aquele que confia no homem”!
Depois desta acusação da insensatez no seio do Seu Povo, Deus faz um apelo à Confiança como fonte de felicidade e vida completa. Com uma imagem muito bonita, diz que viver à luz desta Confiança é como ser árvore à beira da água, à qual nunca falta porque a torrente é fiel…

2. Na segunda leitura, da Carta aos Coríntios, Paulo fala exactamente da mesma dinâmica de Confiança que o profeta Jeremias, mas com a diferença de que Paulo já se encontra “na outra encosta da história”, ou seja, já anuncia a Palavra de Deus depois do acontecimento pascal de Jesus! Assim, à luz da ressurreição de Jesus como fonte de ressurreição para toda a Humanidade, Paulo admira-se que haja entre os Coríntios irmãos que não aceitam a ressurreição da Vida Humana. Acreditam na ressurreição de Jesus, mas não na de mais ninguém! Já se manifestava aqui um “perigo” que não existia na cultura judaica mas que surgiu cedo no seio da cultura grega: compreender as pessoas humanas de maneira individualizada, e não de uma maneira orgânica.
Na mentalidade bíblica (que era a de Paulo) as pessoas entendem-se como pertença orgânica de um todo que é maior que elas, formam uma só “Carne” (o que nós queremos dizer com “Humanidade”, mas não manifesta verdadeiramente o sentido de “corpo” que tem na língua hebraica). A cultura grega, por sua vez, entendia cada pessoa individualmente, como um composto individualizado de corpo e alma. Por isso é que o ideal de perfeição grego tinha a ver com a meditação, a contemplação filosófica, o alheamento do mundo, do prazer e dos outros… Enquanto que a perfeição bíblica realiza-se na justiça, na partilha, na compaixão e na construção da fraternidade.
Para Paulo não fazia sentido que os dons de Deus pudessem ser “individuais”, mesmo em relação a Jesus! Por isso faz uma das afirmações mais ousadas do Novo Testamento: “Se os mortos não ressuscitam, então Cristo também não ressuscitou!” O Apóstolo não consegue conceber a ressurreição como privilégio de Jesus mas como acontecimento inaugurador de uma história de Salvação protagonizada pelo Espírito Santo.
O destino de toda a Família Humana é o próprio destino de Jesus, o Cristo Ressuscitado! Por isso estamos chamados a viver e a testemunhar desde já esta Esperança. Um dos sinais evidentes deste testemunho é o modo como lidamos com as “coisas” deste mundo, as riquezas, o poder, os privilégios, o prestígio…
A Ressurreição de Jesus e a Palavra de Deus que o Espírito semeia no Coração dos crentes aponta-nos a Vida para o Essencial [que é a construção do Homem Interior] e para o Eterno [o Homem Interior é o único que atravessa a fronteira da morte].
Isto faz-nos amar o mundo e as “coisas” do mundo como quem ama o campo onde semeia o centeio, sabendo, no entanto, que se alimentará dele, já transformado em pão, não no campo mas à mesa “lá de casa” com os seus…
Isto faz-nos relativizar muitos dos bens absolutos do mundo, muitas das suas certezas, seguranças e vaidades…
Por isso é que Paulo afirma: “Se a nossa Esperança em Cristo é só para as coisas desta Vida, somos os mais miseráveis de todos os Homens!”
Com efeito, uma experiência de Fé-Esperança-Amor que não nos tenha aberto o horizonte da Vida em Plenitude como ponto de chegada da Vida em Construção, não cumpriu ainda a sua missão, nem sequer em relação à sabedoria e à diferença com que devemos olhar o mundo, amá-lo e edificá-lo segundo a Vontade de Deus.

3. É neste horizonte que devemos compreender as Bem Aventuranças que Jesus proclama. As Bem Aventuranças são como uma síntese do Evangelho de Jesus, a Carta Magna do Reino de Deus. São uma profecia evangélica, na medida em que apontam o projecto de Deus como meta a alcançar e proclamam “Felizes” aqueles que desde já se comprometerem na sua construção.
O Reino de Deus é o modo como Jesus chama à realidade totalmente transfigurada no desígnio salvador de Deus. Por isso, a plenitude do Reino de Deus é o Céu! Reino de Deus e Família de Deus são sinónimos. Construir o Reino de Deus na história significa construir a Família nos laços do Espírito Santo, ou seja, comprometer-se com a causa da Fraternidade.
Sabemos já que a Esperança não é a atitude de quem “aguarda”, mas sim a atitude de quem constrói e antecipa aquilo que espera. A Esperança é a acção da Fé!
As Bem Aventuranças são, por isso, a mais ousada proclamação da Esperança no Reino de Deus. Por isso é que Jesus as proclama, bem como às “Maldições”, deste jeito: “Agora, é assim… depois, será assim…”
Nesta profecia evangélica está anunciada e proposta a mudança radical da realidade, a inversão de valores e importâncias. Por isso, não são um “calmante” para as “dores de viver”, nem uma promessa idílica de “outra vida” ou “outro mundo”, mas antes uma “espinho cravado na carne” dos discípulos de Jesus que os faz tomar atitudes concretas em sintonia com as do Mestre.
Felizes os discípulos de Jesus que já perceberam que não há “outra vida depois desta”, mas sim esta Vida que vivemos e construímos divinamente transfigurada! Felizes os discípulos de Jesus que deixaram de “olhar para o céu”, os que finalmente se cansaram de esperar piedosamente “outro mundo” e começaram profeticamente a transformar este!
Viver no espírito das Bem Aventuranças implica uma adesão ao mundo dos pobres, onde é preciso defender a Verdade, a Justiça e a Dignidade das pessoas. “Pobres” na bíblia, tem um significado mais abrangente e profundo que a “carência material”. Em hebraico, “pobres” diz-se “anauim”, que significa os que estão “debaixo de um peso”, os “encurvados” ou “esmagados”…
Com efeito, Jesus curava-libertava todos os que andavam “encurvados” (Lc 13, 10-13): “Jesus impôs-lhe as mãos e ela imediatamente se endireitou…” Por isso ganham muita importância estas expressões que Jesus usa tantas vezes nos seus sinais libertadores: “Levanta-te!” (Lc 5, 24) ou “Põe-te de pé!” (Lc 8, 54)
Anunciar as Bem Aventuranças aos pobres não é dar-lhes motivos eternos para agora se resignarem, mas dar-lhes antes motivos eternos para agora lutarem! Caso contrário, retiramos às Bem Aventuranças toda a força que elas têm…
O evangelista Lucas é muito menos “espiritualista” ao transmitir-nos as Bem Aventuranças do que Mateus (Mt 5, 1-11). Enquanto este diz: “Felizes os pobres em espírito”, Lucas diz apenas “os pobres”, sem dar hipótese a “fugas interpretativas” e espiritualismos cómodos… Do mesmo modo diz secamente “Felizes vós que tendes fome”, sem recorrer à espiritualização de Mateus: “fome e sede de justiça…” Enquanto Mateus diz que “os que choram serão consolados”, Lucas afirma que “os que choram hão-de rir!”, como que proclamando já a inversão da história e a vitória de Deus e dos Seus “pobres”… Como nós dizemos em português: “Quem ri por último, ri melhor!”
Para marcar esta força profética e historicamente transformadora, Lucas em vez de escrever oito Bem Aventuranças como Mateus, escreve quatro apenas, e acrescenta-lhes quatro “Maldições”: “Ai de vós!”
Aqui entre nós… É muito mais fácil anunciar as Bem Aventuranças aos pobres do que as Maldições aos ricos e poderosos!
Mas o Evangelho tem destas coisas… É Boa Notícia para todos, mas não é “Boa” para todos ao mesmo tempo e da mesma maneira… Porque não há nada menos neutro do que o Amor. O Amor toma sempre partido, assume sempre posição. Por isso, também Deus Se revela sempre do lado dos mais fracos e encurvados sob a opressão dos fortes!
A “Boa” Notícia que para uns é Esperança e Confirmação, para outros é Denúncia e apelo à Conversão…
Que o Espírito Santo de Jesus Ressuscitado possa contar connosco para a missão da construção do Reino!


2 comentários:

Anónimo disse...

Vim só para dizer que estou atento ao vosso trabalho. Gosto muito deste espaço, pois é bastante importante para muita gente.Em cada visita que faço vejo que Deus está e que continua a ser fiel. Espero também ser fiel e fazer sempre a minha parte.
Obrigado e grande abraço.

Anónimo disse...

Acabei de descobrir este sítio, por mero acaso/Providência Divina... e foi agradável reencontrar a explicação de «anauim»...

Saudações e muitas felicidades para este V/ sítio!!

Carlos P.