“Felizes aqueles que escutando todas estas tuas palavras, Senhor, não se riem de ti!"

Domingo VII do Tempo Comum (C)
1ª Leitura - Do 1º Livro de Samuel


Saul desceu ao deserto de Zif com três mil homens, escolhidos entre todo o Israel, para ir em busca de David, pelo deserto de Zif. David e Abisai penetraram, pois, durante a noite, no meio das tropas. Saul dormia no acampamento, tendo a lança cravada no chão, à cabeceira. Abner e seus homens dormiam à volta dele. Abisai disse a David: «Deus entregou hoje nas tuas mãos o teu inimigo; agora, pois, deixa-me que o crave na terra com a lança, de um só golpe. Não falharei à primeira.» Respondeu David: «Não o mates. Quem poderia, sem pecado, estender a mão contra o ungido do Senhor?» David apanhou a lança e a bilha de água que estavam à cabeceira de Saul, e retiraram-se. Ninguém viu ou sentiu nem se moveu, pois todos dormiam um sono profundo, que o Senhor lhes tinha enviado. David passou para o outro lado e parou ao longe, no cimo da colina, a grande distância. Disse David: «Aqui está a lança do rei: manda um dos teus homens buscá-la! O Senhor recompensará cada um, segundo a sua fidelidade e justiça. Ele entregou-te hoje em meu poder, mas eu não quis estender a minha mão contra o seu ungido.»

2ª Leitura - Da 1ª Carta de Paulo aos Coríntios


Assim está escrito: o primeiro homem, Adão, foi feito um ser vivente e o último Adão, um espírito que vivifica. Mas o primeiro não foi o espiritual, mas o terreno; o espiritual vem depois. O primeiro homem, tirado da terra, é terrestre; o segundo vem do céu. Tal como era o terrestre, assim são também os terrestres; tal como era o celeste, assim são também os celestes. E assim como trouxemos a imagem do homem da terra, assim levaremos também a imagem do homem celeste.

3ª Leitura - Do Evangelho de Lucas


«Digo-vos, porém, a vós que me escutais: Amai os vossos inimigos, fazei bem aos que vos odeiam, abençoai os que vos amaldiçoam, rezai pelos que vos caluniam. A quem te bater numa das faces, oferece-lhe também a outra; e a quem te levar a capa, não impeças de levar também a túnica. Dá a todo aquele que te pede e, a quem se apoderar do que é teu, não lho reclames. O que quiserdes que os outros vos façam, fazei-lho vós também. Se amais os que vos amam, que agradecimento mereceis? Os pecadores também amam aqueles que os amam. Se fazeis bem aos que vos fazem bem, que agradecimento mereceis? Também os pecadores fazem o mesmo. E, se emprestais àqueles de quem esperais receber, que agradecimento mereceis? Também os pecadores emprestam aos pecadores, a fim de receberem outro tanto. Vós, porém, amai os vossos inimigos, fazei o bem e emprestai, sem nada esperar em troca. Então, a vossa recompensa será grande e sereis filhos do Altíssimo, porque Ele é bom até para os ingratos e os maus. Sede misericordiosos como o vosso Pai é misericordioso. Não julgueis e não sereis julgados; não condeneis e não sereis condenados; perdoai e sereis perdoados. Dai e ser-vos-á dado: uma boa medida, cheia, recalcada, transbordante será lançada no vosso regaço. A medida que usardes com os outros será usada convosco.»


Comentário às Leituras
"Bem Aventurados aqueles que escutando todas estas tuas palavras, Senhor, não se riem de ti"
1. Os dois livros do Profeta Samuel giram à volta da figura de David como o eleito de Deus para conduzir o Seu Povo à unidade e à paz das Doze tribos de Israel na Terra Prometida. Antes de David, Deus tinha contado com Saul mas, entretanto, este primeiro rei de Israel revelara-se insensato, impaciente e incapaz de realizar a sua missão de “Ungido do Senhor”.

Os capítulos 24, 25 e 26 do primeiro livro de Samuel têm um tema comum: a vingança dos homens não realiza a justiça de Deus! (Tg 1, 20) Como é comum na cultura bíblica, esta Sabedoria é ensinada em forma de três histórias. Uma delas acontece entre David e Nabal, o senhor rico de uma região onde David andou com o seu “exército”, fugindo a Saul. Depois de Nabal ter sido protegido e bem tratado por David, recusou-se a dar-lhe de comer. As outras duas referem-se à perseguição que Saul andava a fazer a David para o matar, por ciúmes e receio de perder o trono. É esse o contexto desta história em que David consegue penetrar o acampamento do exército que o queria matar e, podendo vingar-se de Saul e matá-lo durante o sono com a sua própria lança, preferiu levá-la como sinal de que preferia a paz. É bom lembrar que David, na corte de Saul, já tinha sido atacado quase mortalmente por aquela lança…

Ao escolher David, Deus tinha-se “apoderado” dele pela unção do Espírito (1Sam 16, 13). Viver sob o domínio do Espírito implica, por isso, esta consciência de que a vingança não anda de mãos dadas com a justiça, nem violência se dá com a verdade.


2.
Depois de anunciar as Bem Aventuranças aos seus discípulos, Jesus continua a revelar-lhes os critérios da Sabedoria com os quais se constrói o Reino de Deus. O pedaço do Evangelho de Lucas que hoje proclamamos é uma recolha de frases de Jesus e ensinamentos ditos seguramente em diversas ocasiões e depois recolhidas pelos Apóstolos.

Na sua simplicidade, apresentam uma exigência muito grande e tornam-se critérios práticos para viver de acordo às Bem Aventuranças.

Mandando “amar os inimigos e rezar pelos que nos fazem mal”, Jesus não está a dizer para fazermos de conta que o mal não existe ou as agressões não magoam. No entanto, está a convidar os seus discípulos à liberdade de Coração, a não se deixarem vencer pelos desejos de vingança ou rancor.

É esse o sentido da oração pelos inimigos. A oração não muda magicamente as situações mas, na medida em que somos capazes de rezar por aqueles com quem estamos magoados, vamo-nos libertando do rancor e do desejo de nos vingarmos. Rezar pelos inimigos é um exercício prático de perdão, que é muito mais que “desculpar”. O perdão tem a ver com a opção de tirar do Coração a vingança e o rancor.

“Dar a outra face” significa tomar a iniciativa da reconciliação. Para os Sábios, o perdão precede sempre o arrependimento daqueles que os ofendem.

Tomar a iniciativa da reconciliação e estar disposto a perdoar é uma atitude só ao alcance dos Corações maduros e fortes no amor. Não tem nada de ingenuidade… Jesus viveu claramente nesta atitude permanente de perdão e reconciliação e não consigo descortinar nele ponta de ingenuidade!

Viver assim significa comprometer-se a não continuar a espiral da violência em que as nossas relações muitas vezes se transformam.

Jesus não nos manda ser “amiguinhos simpáticos” dos que nos fazem mal! Jesus não nos diz para ignorarmos e calarmos as situações de violência, mentira ou opressão, connosco e com os outros! Diz, isso sim, o mesmo que depois o Apóstolo Paulo ensinará desta maneira: “Não te deixes vencer pelo mal, mas vence o mal com o bem!” (Rom 12, 21) É esta a “reviravolta da história” para a qual apontam as Bem Aventuranças…

Por fim, tudo isto é possível se estivermos atentos para não cairmos nas tentações do egoísmo… Porque o egoísmo faz que nos levemos muito “a sério”, nos demos uma importância que não temos e desejemos que tudo e todos girem à nossa volta…

“Ser misericordioso como o Pai do Céu é misericordioso” significa aprender a viver com gratuidade, liberto da escravidão do interesse e da recompensa!

Quase me apetece acrescentar mais uma Bem Aventurança ás de Jesus: “Felizes aqueles que escutando todas estas tuas palavras, Senhor, não se riem de ti!!!”

3. Na segunda leitura de hoje, Paulo “explica” aos cristãos de Corinto que a passagem da morte é um acontecimento transfigurador de toda a pessoa. A morte é como o parto, em que se passa “da vida à vida”: no parto acontece a morte da vida intra-uterina e o nascimento da vida histórica-relacional. Também assim será no “parto” definitivo: uma passagem da vida para a Vida!
Usando as antíteses natural/espiritual e Adão/Jesus, Paulo fala da história como gestação e da Ressurreição como Vida Plena: “Assim como trazemos em nós a imagem do Homem Terreno [Adão: Vida em Construção], traremos também em nós a imagem do Homem Celeste” [Jesus: Vida em Plenitude].
“Trazer a imagem” significa, na linguagem do Apóstolo, “pertencer”.
O conhecimento desta Plenitude de Vida em Jesus dá-nos o horizonte da Ressurreição e enche-nos de Esperança para vivermos desde já “bem apontados”…


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