A um passo de ser Feliz...

Domingo XXVIII do Tempo Comum (B)
1ª Leitura - Do Livro da Sabedoria
Por isso pedi, e foi-me dada a inteligência; supliquei, e veio a mim o espírito de sabedoria. Preferi-a aos ceptros e aos tronos, e, em comparação com ela, vi que não eram nada as riquezas. Nem sequer a comparei às pedras preciosas, pois o ouro todo, diante dela, é um pouco de areia, e a prata, perante ela, será como lodo. Amei-a mais que a saúde e a beleza, e antes a quis ter a ela que a luz, pois a sua claridade jamais tem ocaso. Com ela me vieram todos os bens, e nas suas mãos está uma riqueza incalculável.
2ª Leitura - Da Carta aos Hebreus
Na verdade, a palavra de Deus é viva, eficaz e mais afiada que uma espada de dois gumes; penetra até à divisão da alma e do corpo, das articulações e das medulas, e discerne os sentimentos e intenções do coração. Não há nenhuma criatura oculta diante dele, mas todas as coisas estão a nu e a descoberto aos olhos daquele a quem devemos prestar contas.
3ª Leitura - Do Evangelho de Marcos
Quando se punha a caminho, alguém correu para Ele e ajoelhou-se, perguntando: «Bom Mestre, que devo fazer para alcançar a vida eterna?» Jesus disse: «Porque me chamas bom? Ninguém é bom senão um só: Deus. Sabes os mandamentos: Não mates, não cometas adultério, não roubes, não levantes falso testemunho, não defraudes, honra teu pai e tua mãe.» Ele respondeu: «Mestre, tenho cumprido tudo isso desde a minha juventude.» Jesus, fitando nele o olhar, sentiu afeição por ele e disse: «Falta-te apenas uma coisa: vai, vende tudo o que tens, dá o dinheiro aos pobres e terás um tesouro no Céu; depois, vem e segue-me.» Mas, ao ouvir tais palavras, ficou de semblante anuviado e retirou-se pesaroso, pois tinha muitos bens. Olhando em volta, Jesus disse aos discípulos: «Quão difícil é entrarem no Reino de Deus os que têm riquezas!» Os discípulos ficaram espantados com as suas palavras. Mas Jesus prosseguiu: «Filhos, como é difícil entrar no Reino de Deus! É mais fácil passar um camelo pelo fundo de uma agulha, do que um rico entrar no Reino de Deus.» Eles admiraram-se ainda mais e diziam uns aos outros: «Quem pode, então, salvar-se?» Fitando neles o olhar, Jesus disse-lhes: «Aos homens é impossível, mas a Deus não; pois a Deus tudo é possível.» Pedro começou a dizer-lhe: «Aqui estamos nós que deixámos tudo e te seguimos.» Jesus respondeu: «Em verdade vos digo: quem deixar casa, irmãos, irmãs, mãe, pai, filhos ou campos por minha causa e por causa do Evangelho, receberá cem vezes mais agora, no tempo presente, em casas, e irmãos, e irmãs, e mães, e filhos, e campos, juntamente com perseguições, e, no tempo futuro, a vida eterna.
 
Comentário às Leituras
A um passo de ser Feliz...
I. Diz a bíblia, no primeiro livro dos Reis (3, 5-15), que Salomão uma vez teve um sonho em que Deus lhe fez a seguinte proposta: “Pede-me tudo o que quiseres! Pede o que quiseres, que EU to darei!”. Salomão, filho de David, era um rei muito jovem… então, reflectiu e pediu a Deus a Sabedoria para governar sempre o seu povo da maneira mais sensata. Deus abençoou Salomão com o dom da Sabedoria e, como ele soube pedir bem, concedeu-lhe também tudo o resto que não tinha sequer pedido!
Hoje lemos um pouquinho do livro da Sabedoria, escrito já cerca de 70 anos antes de Jesus em forma de hinos do rei Salomão. A Sabedoria é na bíblia a abertura ao Espírito de Deus que dá aos Homens a lucidez e a capacidade de agir segundo a Sua Vontade. Por isso, a Sabedoria é considerada a máxima riqueza a que o Coração humano deve aspirar.
É no seguimento desta espiritualidade bíblica que os evangelhos mostram muitas vezes Jesus a denunciar a insensatez dos ricos e a proclamar “Felizes os pobres”! Ele próprio vivia como um pobre, e fez certamente muitas vezes a experiência de ser rejeitado ou provocado pelos ricos e poderosos das terras por onde passava.
Este tema presta-se a muito moralismos em que às vezes se cai, e à famosa luta entre o “SER e o TER”! Com todos os ritmos negativos associados ao consumismo e à injustiça de uma sociedade global norteada por interesses capitalistas, temos, no entanto, que compreender que a riqueza na bíblia não é tanto uma questão de ter muitas coisas, mas de não ser livre diante delas. O rico não é simplesmente o que possui muitas coisas, mas aquele que é possuído por aquilo que tem. Este fecha-se à partilha e à disponibilidade. Não podemos esquecer que a riqueza na bíblia é muitas vezes considerada como bênção de Deus! A condenação da riqueza é a condenação do Egoísmo.
O rico é o que se senta e se centra nas suas “riquezas”, põe nelas a sua segurança e a sua felicidade. Por isso, na bíblia os ricos acabam sempre por ser os fracassados da história…
Os pobres são os livres, os capazes de abdicar do que possuem em nome de apelos maiores, disponíveis à partilha. Ser pobre na bíblia também não significa simplesmente não possuir coisas, mas sim não se deixar possuir por coisas.
Jesus bem dizia que “é difícil um rico entrar na lógica do Reino de Deus”, porque é a lógica da partilha, da comunhão e da liberdade. “É mais fácil passar um camelo pelo fundo de uma agulha…” Mas ainda hoje penso que os camelos foram os únicos a ficar preocupados com isto! (Mc 10, 25)
II. O encontro do evangelho de hoje narra uma experiência certamente muito frequente de Jesus, o Pobre de Nazaré: ser rejeitado ou ignorado pelos ricos, mesmo por aqueles que manifestavam algum entusiasmo momentâneo pela sua Boa Nova. A verdade é que para estes é mais difícil entregar-se ao seguimento do Messias da Graça, porque há muito em risco…
O “deus” que só pede o cumprimento de uns quantos mandamentos para ficar contente é sempre melhor para estes, nem que seja porque um “deus” assim nunca põe em causa as suas “riquezas”. Por isso é que os pescadores deixaram as redes com mais facilidade e, de Coração agradecido, estavam melhor preparados para fazer a experiência do “cem vezes mais”…
Jesus, o Messias do DEUS A CAMINHO é subitamente travado pelo entusiasmo de alguém que corre, se ajoelha e o questiona. Quanta vontade, quanta pressa! Certamente tinha escutado Jesus a anunciar a Boa Nova por aqueles dias… Estava tudo tão fresco ainda na memória, a novidade das suas palavras, a força dos seus gestos, a autoridade das suas atitudes, a diferença das suas escolhas…
Então foi ter com ele, como quem se dirige a um “Bom Mestre”, mas não verdadeiramente como quem se encontra com o Rosto daquele que é capaz de nos desconcertar a Vida, relativizar os nossos projectos e enviar-nos a horizontes que nem suspeitávamos antes que existissem!
Este homem, de quem nem chegámos a saber o nome, vivia na lógica das leis judaicas e dos mandamentos da antiga Aliança: “Que devo fazer para alcançar a Vida Eterna?” O único sujeito na pergunta é ele próprio! E a “caminhada” para a Vida que ele pede faz-se pelo “caminho” do cumprimento de obrigações na lógica da conquista de méritos. Diante do Rosto humano da Graça de Deus, aquele homem clamou pelo “deus dos mandamentos”. Jesus não se deixou perturbar… “Sabes os mandamentos”…
Ele sabia e cumpria tudo! Devia sentir-se quase perfeito, mas ao mesmo tempo havia dentro dele uma fome por saciar. Por isso veio ter com Jesus, para lhe pedir o mais novo e actualizado mandamento do Profeta de Nazaré. Era isto que ele pedia a Jesus: mais uma “peça” para montar na sua “engrenagem”. Mas o que Jesus lhe pede é que mude de “engrenagem”, mude de lógica! Não é pela multiplicação dos mandamentos que o Homem chega a ser como Deus o sonha, mas pela mudança de lógica ao nível da Mente e do Coração, para ser capaz de optar, decidir e agir ao jeito da vontade de Deus.
Começou a sentir-se perturbado… É o que sentimos sempre quando desconcertam as nossas lógicas, quando “tiram peças à nossa engrenagem”… Para viver “a caminho” com Jesus, era preciso desinstalar-se. É sempre! Era preciso reaprender a arte da partilha, voltar à escola da dádiva, ter a coragem de arriscar ser Livre e ser Feliz. Jesus convida à Lógica da Graça, à Aventura do Amor.
Mas Jesus é o Rosto visível do Deus que Se Propõe, não Se Impõe… Corre o risco de ouvir “nãos!”
“O homem ficou de semblante carregado e retirou-se triste, pois tinha muitos bens…”
Que diferença entre este homem e aquele que uns minutos atrás vinha a correr, entusiasmado, ofegante… O desencontro com Jesus é sempre fonte de tristeza, porque não acolher os apelos do “Bom Mestre” significa fechar-se ao melhor para si próprio! A vontade de Deus coincide sempre com o melhor para nós, e recusá-la significa condenar-se a ficar aquém do que se poderia ser.
Se este homem tivesse acolhido a aventura do seguimento de Jesus, teria visto a sua Vida “a caminho” com ele até à Terra Prometida da Graça e da Felicidade, o Mundo de Deus onde a riqueza não é nunca um “monte de coisas” e todos são verdadeiramente Livres. Mas nem todas as histórias são encantadas, e esta não teve um final feliz… Porque em nome dos “bens” que tinha, recusou o Melhor que o esperava…
III. No pedaço da Carta aos Hebreus de hoje a Palavra de Deus é proclamada como Viva e Eficaz, isto é, realiza aquilo que significa! Esta Vida e Eficácia da Palavra não “cai do céu” mas acontece na medida em que nós nos abrimos à Vida da Palavra na nossa própria Vida e à Eficácia da Palavra no nosso próprio esforço.
A Palavra de Deus é como uma Espada, a “Espada do Espírito” como diz S. Paulo: divide e separa dentro de nós umas coisas e outras… Isto quer dizer que a Palavra de Deus é a presença-acção de Deus que nos abre ao discernimento. A escuta da Palavra de Deus gera em nós a Sabedoria pela qual nos tornamos capazes de agir segundo a Vontade de Deus, que coincide sempre com o máximo bem para nós e para os outros.

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